Ah! Reconheço que estava à espera de um pequeno registo na tua árvore de sentimentos. Qualquer coisa de ligeiro. Um vestígio. Mas, ainda assim, uma pequena marca visível. Daquelas que passam despercebidas ao transeunte apressado ou mesmo ao observador rotineiro, e apenas recebem o reparo do obsessivo que encontra dez diferenças nos passatempos em que apenas estão previstas sete. Não que eu ande à procura de diferenças. Procurei enquanto achei que valia a pena, e bastante tempo mais depois de achar que já não valia a pena, e depois fui embora para casa descansar. O que não quer dizer que não seja obsessivo com as diferenças, ou que não sejam as diferenças o sal da minha monótona vida. Nem vale a pena falar de diferenças. Talvez noutra altura e noutro lugar. O que eu esperava, lá no fundo, era um pequeno registo historiográfico, uma nódoa que fosse a marcar presença, a dar a curta impressão de existência. Nada que fosse uma ténue marca de água - que infelizmente sempre me coloquei na discreta, cómoda e orgulhosa posição de espectador ausente - mas uma mancha tombada na margem da fotografia, dedada de gordura que estando a mais pareceria ainda uma forma de estar presente.
Reconheço que estava à espera de ter existido, digamos assim, por interposta pessoa, como um empecilho ou um resto de sobremesa. Uma bagagem perdida. Estaria lá, nem que fosse por se ver uma sombra num dia de sol mais inclinado. Mas não foi assim. O que salta à vista, ainda que filtrado pelo inevitável sabor a mofo, é a vacuidade de todo um esforço para existir na inexistência. Desejos que não se conformaram aos factos e que não quiseram ter certezas por saberem que nunca as teriam. E uma fuga quase contínua aos gestos exagerados. No fundo uma horrível inaptidão para a pose.
Dirás que lá estou eu a chamar virtudes aos defeitos ou a orgulhar-me de perícias inúteis. Saltos de cavalo em tabuleiros de xadrez muito frágeis. É provável. Hoje já não estou em condições de disputar as razões que perdi demasiadas vezes. E nem é disso que estou a falar. Estou apenas a referir o vácuo, a maneira lisa como me esfumei da história sem deixar um leve aroma. Há dias, num contexto absolutamente diferente de todos, alguém se referiu a mim - ou mais concretamente a um meu personagem - que dos fracos não reza a história. Suponho que, com tempo, se poderia construir toda a humanidade sobre esta frase e a estranha concordância que ela gera. Eu próprio, se tivesse talento e tempo, poderia desconstruí-la nas suas inúmeras ramagens coloridas que enfeitam uma inegável enormidade de orgulhosas campas.
O meu reino, chamemos-lhe assim, passou ao lado de todas as possibilidades de sucesso. Mas permanecia essa ideia estranha de ser marca de alguma coisa em algum lado para alguém. Não sendo assim dá a impressão de ter ficado o caminho ainda mais limpo de destroços e o tempo mais conforme com as necessidades da alma. Ainda hoje me apercebi que é bastante fácil, querendo, encontrar Deus dentro de uma manga. Refiro-me ao fruto manga (embora não ponha de parte a ideia de O encontrar no encobrimento tecido de um braço). No entanto não sou capaz de descrever por palavras esta sensação que, por momentos (precisamente enquanto comia uma manga), se me tornou evidente. Fica a ideia apenas, para explorar depois da reforma, com os tais anos de saúde que o futuro promete para depois da nossa época produtiva.
Não estive lá. É isso. É como o lameiro que está calmo sob o viaduto. Os viajantes passam todos por ele mas não existe por não ser visível da velocidade rigorosa com que se atravessam as coisas. Uma velocidade que traz o desejo imponente de chegar. O lameiro ouve o rugido das viaturas carbomovidas e sabe da sua existência. Mesmo que alguma caia despistada no acaso de um voo diurno etilizado, a morte ou o álcool ou o simples aborrecimento evitarão a maçada de um lameiro na história da elegância. E não há nada mais aborrecido que uma comparação para fazer valer um argumento. O certo é que não estive lá.