Tuesday, November 18, 2008

Postevintidois

Ah! Reconheço que estava à espera de um pequeno registo na tua árvore de sentimentos. Qualquer coisa de ligeiro. Um vestígio. Mas, ainda assim, uma pequena marca visível. Daquelas que passam despercebidas ao transeunte apressado ou mesmo ao observador rotineiro, e apenas recebem o reparo do obsessivo que encontra dez diferenças nos passatempos em que apenas estão previstas sete. Não que eu ande à procura de diferenças. Procurei enquanto achei que valia a pena, e bastante tempo mais depois de achar que já não valia a pena, e depois fui embora para casa descansar. O que não quer dizer que não seja obsessivo com as diferenças, ou que não sejam as diferenças o sal da minha monótona vida. Nem vale a pena falar de diferenças. Talvez noutra altura e noutro lugar. O que eu esperava, lá no fundo, era um pequeno registo historiográfico, uma nódoa que fosse a marcar presença, a dar a curta impressão de existência. Nada que fosse uma ténue marca de água - que infelizmente sempre me coloquei na discreta, cómoda e orgulhosa posição de espectador ausente - mas uma mancha tombada na margem da fotografia, dedada de gordura que estando a mais pareceria ainda uma forma de estar presente.

Reconheço que estava à espera de ter existido, digamos assim, por interposta pessoa, como um empecilho ou um resto de sobremesa. Uma bagagem perdida. Estaria lá, nem que fosse por se ver uma sombra num dia de sol mais inclinado. Mas não foi assim. O que salta à vista, ainda que filtrado pelo inevitável sabor a mofo, é a vacuidade de todo um esforço para existir na inexistência. Desejos que não se conformaram aos factos e que não quiseram ter certezas por saberem que nunca as teriam. E uma fuga quase contínua aos gestos exagerados. No fundo uma horrível inaptidão para a pose.

Dirás que lá estou eu a chamar virtudes aos defeitos ou a orgulhar-me de perícias inúteis. Saltos de cavalo em tabuleiros de xadrez muito frágeis. É provável. Hoje já não estou em condições de disputar as razões que perdi demasiadas vezes. E nem é disso que estou a falar. Estou apenas a referir o vácuo, a maneira lisa como me esfumei da história sem deixar um leve aroma. Há dias, num contexto absolutamente diferente de todos, alguém se referiu a mim - ou mais concretamente a um meu personagem - que dos fracos não reza a história. Suponho que, com tempo, se poderia construir toda a humanidade sobre esta frase e a estranha concordância que ela gera. Eu próprio, se tivesse talento e tempo, poderia desconstruí-la nas suas inúmeras ramagens coloridas que enfeitam uma inegável enormidade de orgulhosas campas.

O meu reino, chamemos-lhe assim, passou ao lado de todas as possibilidades de sucesso. Mas permanecia essa ideia estranha de ser marca de alguma coisa em algum lado para alguém. Não sendo assim dá a impressão de ter ficado o caminho ainda mais limpo de destroços e o tempo mais conforme com as necessidades da alma. Ainda hoje me apercebi que é bastante fácil, querendo, encontrar Deus dentro de uma manga. Refiro-me ao fruto manga (embora não ponha de parte a ideia de O encontrar no encobrimento tecido de um braço). No entanto não sou capaz de descrever por palavras esta sensação que, por momentos (precisamente enquanto comia uma manga), se me tornou evidente. Fica a ideia apenas, para explorar depois da reforma, com os tais anos de saúde que o futuro promete para depois da nossa época produtiva.

Não estive lá. É isso. É como o lameiro que está calmo sob o viaduto. Os viajantes passam todos por ele mas não existe por não ser visível da velocidade rigorosa com que se atravessam as coisas. Uma velocidade que traz o desejo imponente de chegar. O lameiro ouve o rugido das viaturas carbomovidas e sabe da sua existência. Mesmo que alguma caia despistada no acaso de um voo diurno etilizado, a morte ou o álcool ou o simples aborrecimento evitarão a maçada de um lameiro na história da elegância. E não há nada mais aborrecido que uma comparação para fazer valer um argumento. O certo é que não estive lá.

Tuesday, April 29, 2008

Postvinteeum

Quando nos despedimos pela primeira vez, naquela calma própria que antecede os cataclismos, disse-te, naquele retardamento que me é próprio quando os acontecimentos me transcendem, que sim, que pois claro, que tudo bem. De facto, para que servem os afectos, mesmo aqueles que parecem transcritos de uma certa mitologia, senão para se dissolverem no tempo e sofrerem o remate travesso do esquecimento? Não havia nada a objectar naquele momento relativista em que as razões da liberdade se sobrepunham, de uma maneira clara, a quaisquer veleidades de escrúpulo ou memória. O corpo é mesmo assim: mesmo que nade com esforço nada pode fazer contra a intensidade fundamental da maré. Em todos os aspectos do corpo.


Quando nos despedimos pela primeira vez, num lugar que entretanto esqueci por se sobrepor a outros lugares onde nos voltámos a despedir outras vezes, não fui capaz de perceber, naquele momento relativista, como de um corpo que se havia perdido do meu, o meu corpo não cederia assim tão facilmente, mesmo que naquele instante relativista, a minha inércia própria se tivesse enregelado de impossibilidade. De facto, para que serve um corpo, mesmo um corpo que se perdeu do seu próprio sentido, senão para aquecer um momento e depois se arrefecer para sempre? Nada havia nos sinais mudos do corpo inerte que não desse a entender que sim, que pois claro, que tudo bem.


Quando nos despedimos pela primeira vez, numa data que ficou submersa de outras recordações mais fortes, pensei, naquela maneira obscura que tenho, de acreditar que tudo pode ser pensado e divinamente submetido à razão, que o que tinha de acontecer tinha acontecido, não como estava escrito nos livros ou no destino, mas como estava descrito na desordem natural das coisas. De facto, que podemos nós hoje querer mais do que uns minutos de harmonia antes de algum fogo de artifício que faça morrer o tédio? O que procuramos no outro é consolo e vibração, intensidade e devaneio, confronto, movimento e tempo. E cada passo que se dá tem que ter essa formalidade fractal, essa redundância de uma surpresa que surpreende por ser a surpresa de que se está à espera.


A sorte é que nunca se sabe tudo. Cada dia vai acrescentado novos dados e esquecendo outros. Ambos igualmente certos e verdadeiros. Uma cadeia de certezas que se vai ligando ao desconforto de outras. Cada dia vai mostrando como ontem estávamos errados e hoje não. Uma roda que corre substituindo umas verdades por outras, uns sorrisos por outros, uns abraços por outros, uns medos por outros. Tudo muito vagamente no estreito intervalo entre a verdade e a ficção. Tudo muito ligado a este estranho mundo que estando obcecado com o medo de nada ser permanente, acaba por divinizar a mudança, como os antigos que ofereciam às divindades tirânicas o que de melhor tinham, por terem medo de as ignorar.

Friday, March 28, 2008

Postvinte

Como vês não acontecem muitas coisas na nossa ausência. Os estados de ser ou de não-ser anulam-se e tudo é varrido no mesmo efeito de memória apagada. O facto é que depois de termos estado num lugar já não somos os mesmos. Mesmo que, pelo artificio raivoso do esquecimento, não saibamos porquê. Só confrontados com a crença e com insólitos testemunhos podemos ousar discutir o efeito pragmático do tempo.


Se eu acreditasse em qualquer coisa, mesmo que fosse em paradoxos, poderia distrair-me a encontrar correlações difusas entre causas e efeitos, ou entre razões e emoções, ou mesmo entre factos e desejos. Mas sei - fiquei entretanto a saber - que o que quer que procuremos só terá valor se o não encontrarmos.


Acordar todos os dias com o vazio a enrolar as mãos, acaba por tornar muito importantes pequenos sinais que se insinuam no tremelicar das pálpebras.


Há navios que se movem no propósito de chegar a lugares comuns. Há outros que percebem no caminho os bons ventos e avistam na distância o sucesso da empresa. Mas também há os que andam à deriva, sabendo ou não de existirem portos seguros, sempre ignorantes do vigoroso manejo do leme.


No essencial há um momento em que se percebe que a justiça é uma construção. Frágil e retorcido programa de actividades, muito palavroso, muito livresco, muito retórico. No essencial há um momento em que se percebe que a justiça é uma coisa que nunca é como deveria ser: é uma ideia muito cerimoniosa e volúvel. Ainda assim melhor que nenhuma. Uma deriva entre continentes que não se querem perder.


É sempre esse o problema: perder. Nenhum gesto é feito sem que se contabilizem as perdas e ganhos. Mais que tudo as perdas. E quando assim não é criam-se lugares fechados para os esconder. É por isso que a justiça e a verdade - e outras que tais - são ainda e sempre vestígios dourados de uma fundamental lei da selva.


Não acontece mesmo nada na nossa ausência. Passam as mesmas pessoas pelos mesmos caminhos com as mesmas expressões de amarelada contingência, vogando nos cérebros intenções vorazes. O alimento é dos que não perdem. Dos que contam os grãos que se podem arrecadar até à morte e, se possível, derivar pela corrente sanguínea das gerações.


Nem tudo será assim hermético. Nesta quase-escolha que se faz de como ir, aparecem por vezes ilusões a perturbar-nos a probabilidade. Suponho que, como o pássaro que bica nervoso a inesperada semente, a única saída é entrar no jogo e, se for caso disso, morrer nele, asfixiado em drama. Uma roleta russa que tem como única moral o acaso. Justa, portanto.

Tuesday, December 11, 2007

Postdezanove

Faz muitos anos, já não sei quantos, que fomos uma noite para a Fonte da Telha, fugindo à luz da cidade, ver uma chuva de estrelas. Diziam que seria a maior de sempre - coisa nunca vista - a Terra a atravessar, no seu percurso celeste, uma zona densamente povoada com os restos da formação do sistema solar. E esperávamos vê-los morrer queimados ao atravessarem a nosso protectora atmosfera. Faz muitos anos.

Lembrei-me hoje quando vinha do trabalho. Por que no céu limpo e iluminado, enquanto conduzia, consegui ver um inesperado traço de luz.

Naquela noite, há muitos anos, a ânsia de ver já nos fazia ver riscos onde eles não estavam. Eram necessários para que se justificasse o nosso incómodo. Tínhamos que ter uma qualquer recordação do dia em que tentámos ter alguma recordação. Tínhamos andado dezenas de quilómetros numa noite que não tinha nada de especial a não ser essa manifestação a céu, a substituir-se ao letárgico andar dos dias.

Hoje, talvez por tantos anos, não me lembro se cheguei a ver alguma estrela. Não me lembro se a desilusão foi apenas por as estrelas terem faltado ou por já não haver estrelas para além das estrelas que esperávamos. Mas lembro-me de uma desilusão. Também não me lembro se no teu esforço de não dar por perdido um serão terás visto alguma estrela ou apenas a vontade de ver uma estrela.

Lembrei-me hoje, ao ver, sem as condições ideais da Fonte da Telha, sem aquela escuridão proverbial que permite ver sem o ruído da luz, o fogacho instantâneo de um meteorito a atravessar pressuroso o horizonte ligeiramente acima dos candeeiros da estrada.

Fomos muito longe naquela noite. Os riscos luminosos tinham sido prometidos para a distância do lado de lá do rio e vinham de fora, do espaço, da distância absurda do espaço.

Nessa altura, há muitos anos portanto, enquanto nos deslocávamos para o lugar das promessas, lembrei-me de muitos anos atrás quando eu gostava de me deitar na mesa do quintal, nas noites de verão, a olhar para o céu, por entre as frestas escuras das árvores. Terá sido aí que, por acaso, vi a minha primeira estrela cadente. E foi por ela que lá voltei muitas e muitas noites, à espera que se repetisse a aparição, enquanto a minha mãe não dizia, parando por momento a máquina de costura, que eram horas de ir dormir.

Lembrei-me hoje, por acaso, por ter visto aquele rasto de luz insignificante.

Regressámos ao carro calados. Eu estava preocupado por ter deixado o Uno estacionado à beira da estrada, caindo perigosamente para a berma de areia. Eles tinha prometido uma chuva de estrelas. Talvez elas chegassem mais tarde. Mas no dia seguinte tínhamos que trabalhar e temíamos as filas de trânsito de tantos que, como nós, tinham ido à procura de sinais do céu.

Muitos anos antes eu teria ficado à espera a noite toda, ou até que alguém mais forte me mandasse para a cama. Nessa altura ainda não sabia quem eram aquelas misteriosas viajantes. Apenas sabia que havia homens que há pouco tempo tinham viajado para a Lua e lá tinham deixado pegadas. Tinha lido no jornal que pelo espaço poderíamos andar continuamente, sempre e sempre, e haveria sempre espaço para andar. E era essa surpresa que eu procurava apanhar, deitado em cima da mesa do quintal, olhando fixamente os pontos cintilantes a distâncias que eu não sabia contar.

Não foi nessa noite que vimos estrelas cadentes. Nem depois. Estranhamente não voltámos a conseguir vê-las em nenhum lado. Como víramos no princípio. Depois deixámos de frequentar o frio da noite por não haver tempo para ficar à espera do acaso.


Aibieme

Sunday, October 28, 2007

Postdezoito

Como sabes sou uma figura virtual. Desajeitado, não acompanho os tempos nem as realidades objectivas. Perco-me no meio dos livros numa busca absurda de compreender o que os outros sabem de antemão não se adaptar ao entendimento. Em tempos associei a esta busca, por força de mitos que me perseguiam, uma benignidade que de certa maneira compensava o desleixo que a natureza me deixara. Mas a sucessão de fracassos, o desmentido insistente das vozes circundantes, a própria inconclusão dos projectos e das pesquisas, derrubaram sem piedade quaisquer veleidades do incipiente amor-próprio. O facto é que só procura quem não tem, e se quiséssemos constituir sobre a experiência uma moral elevada, veríamos confirmada a loucura que é querer chegar a algum lado quando se parte demasiado de trás. E se houvesse algum mérito na procura, esse seria o de cumprir os passos necessários para amar.

Ninguém pode gostar do que não gosta, forçando o gesto ou disfarçando a impaciência. Uma figura virtual é sempre amável e encontra facilmente quem a afague em gestos de ternura surpreendida. Na tragédia do dia a dia o doce movimento de darem a mão, o tempo e a atenção sincera, cativa o rosto e o momento, até que o devaneio e a força do sentir se sobreponham no avaliar da situação. É nesses intervalos que a figura virtual sobrevive e é deles que faz a sua dieta desequilibrada de sentimentos. Depois, mesmo esses ocasionais vestígios de afecto secam e a figura virtual fica à deriva, na carência irracional de um gesto que a faça ser. Entretanto, o objecto da sua atenção, permanece enredado em desejos de realidades ideais, relegando a figura virtual para os pontos baixos da travessia.

Não se é figura virtual por gosto ou por dever. É um local de passagem à espera de oportunidade melhor. Por vezes acredita-se que a mão que se dá é uma mão que se toma e que essa é a ocasião de sobreviver. Mas provavelmente nunca acontece. Há sempre o drama de temermos que as nossas vidas se percam por tão pouco e fique no ar todo o mundo que, por uma pequena razão, se rejeita. Há uma economia da figura virtual. Não se consegue amá-la mais do que um pedaço e isso não chega nem para quem a ama, nem para a figura que espera um afecto que a salve da sua virtualidade.

O que a figura virtual pede, na sua irracional ansiedade, é ser querida tal como é, sem precisar de uma mutação genética que a faça parecer tão real que não envergonhe ninguém nos lugares de esplendor eleito. Por que a figura virtual ficará sempre justamente intimidada pelo contraste do excesso e da grandeza.

Reconheço que há uma armadilha no sorriso doce da figura virtual. Quer mais do que pede; pede mais do que é capaz de ter; tem mais do que é capaz de desejar. Faz o que pode para ser escolhido mas não pode muito, porque soçobra em todas as comparações, e depois, no fim dos tempos, fica à espera de ser capaz de voltar a sair à rua e enfrentar o sol.

Friday, August 31, 2007

Postdezassete

Às vezes penso, como tu, que era bom que eu fosse outra pessoa. Era melhor que em vez de este eu que sou, fosse outro eu que não este. Em vez deste silêncio pouco amável, um outro silêncio ruidoso que enchesse o espaço e a razão. Em vez desta cor baça feita de cinzentos, tons vistosos de fogo e de céu nascente. Em vez deste movimento lento de tarde de verão, a vertigem ágil de perseguir o tempo. Em vez deste pacto insípido com o acaso, o prazer de decidir sobre as coisas e saber de todas elas o lugar certo.
Era assim não ser eu: identidade por identidade, corpo por corpo, sentido por sentido. Nenhum gesto ainda reconhecível: outro lado, outro lugar, outra sombra, outra certeza.
Provavelmente não serás só tu - e agora eu - a pensar assim, a pensar como seria melhor se em vez de ser eu aqui fosse outro aqui, outra imagem e outra verdade, outro riso e outra oportunidade. Haverá outras pessoas a chegar a essa conclusão difícil, de substituir uma função por outra e nenhuma intenção por alguma. Num plano muito pessoal essa até poderia ser uma forma de definir a escorregadia seta do tempo.
E eu agora, neste confuso mergulhar do verão, apenas consigo encontrar formas de concordância. As mais demonstráveis das verdades têm sido claras a denunciar que não é assim que se é. Há um mundo inteiro de razões, móveis e bem sucedidas, a dizer em voz alta que os caminhos se trilham de espada na mão e olhar no alto. E hoje, por estes dias, não me sobra energia para contestar a veemência dos que sabem e estão seguros de saber que sabem.
Uma casa é um buraco. Para os devidos efeitos uma casa é um buraco. Um lugar onde estamos supostamente protegidos do mundo e da sua gratidão. Mas numa casa, num buraco, não se muda uma vírgula ao discurso, nem se muda de pele, nem de medos, nem de desejos. É do exterior que nasce a diferença, é do exterior que pode surgir o impossível.
Concordo. Era bom que eu fosse outra pessoa. Teria outros pensamentos e escreveria outras coisas que talvez até fosse capaz de ler.
Concordo. Era bom que eu fosse outra pessoa.

Aibieme

Friday, June 22, 2007

Postdezasseis

No lugar onde moro há fantasmas. Passam de um lado para o outro a zunir, com um propósito que me ultrapassa. Suponho que os trouxe de outros lados, mergulhados no meio dos livros, agarrados ao pó dos objectos ou simplesmente embrulhados numa colecção de memórias mais ou menos oblíquas. Mesmo ouvindo mal, ouço-os à noite a roer o tempo, desprevenidos do súbito silêncio de uma casa oca de sentidos.
Como noutras ocasiões em que me adaptei ao ruído sombrio que vem do prólogo do universo, também se tornaram familiares as deambulações equívocas dos espectros. Há em todas as perturbações um carácter efémero que logo a seguir pode provocar a nostalgia da ausência. Deve ter sido isso que não percebeste.
Tinha-te dito, com alguma ênfase, que não há à minha volta lugares abandonados. Depois de algum tempo de espera o meu lastro cresceu e cada passo que dou é outra vez o primeiro dos últimos.
O que te assustou foram os fantasmas. Poderia dizer-te, como se soubesse, para te aquietar, que são seres inofensivos. Poderia ter falado deles com carinho e mostrar que estão aqui como outras coisas em que ninguém repara. Que sobrevoam as cabeças como se se divertissem e dão gargalhadas alarves que podem perturbar os incautos, mas não vão além da sua centelha de virtualidade. Poderia e deveria tê-los defendido para te defender a ti deles.
Mas eu não sei. Estabeleceu-se, temos de reconhecer, entre mim e o resto-do-mundo, para simplificar, um desentendimento que oscila vigorosamente entre o formal e o estrutural: não sabemos, nem eu nem o resto-do-mundo, se há alguma razão para nos salvarmos. Por isso, e por outras razões certamente, não sou capaz de dizer coisas positivas sobre os fantasmas que moram cá em casa, ainda que com o mero propósito de te fazer sentir mais confiante nas sombras que rasam em velocidades vertiginosas as cabeças que tentam aqui em casa descansar o tempo.
Terão sido eles a fazer-te ir embora abruptamente. Desentendidos das ciências dramáticas não souberam respeitar um rosto que já conheciam bem. E depois, há no gesto brusco de fugir uma mímica própria da libertação que os fantasmas não entendem, livres que são de saber sonhar.
Por outro lado, comigo não acontece nada de especial por sair de casa. Alguns fantasmas, quais anjos-da-guarda, seguem-me pelos caminhos, mesmo que não sejam os meus caminhos, e por isso acostumei-me a tê-los sempre presentes, o que espero, num futuro próximo, tenha o dom de em qualquer lugar, seja onde for, esteja onde estiver, me sinta sempre como se estivesse em casa.

Aibieme

Saturday, April 07, 2007

Postquinze

Às vezes gostava de ser tão grande que fosse capaz de te dar guarida nas minhas mãos e acalmar assim esses teus medos de coisas imaginárias que tu sabes que são reais mas que também sabes que, tratadas como imaginárias, têm menos peso e causam menos perturbação. Seriam, então, as minhas mãos, lugares de paz em vez de prisões que contrariam a todo o instante os desejos e as ilusões e propõem com inabilidade o vazio como local habitável. Nas minhas mãos terias os momentos de serenidade e o local seguro onde habitar na incerteza.
Às vezes gostava de ser tão belo que sobre mim pudesses lavar os olhos da angústia e ter no horizonte a forma rebuscada de um deus que definisse emoções com clareza e luminosidade. Seria, então, o meu corpo, o lugar onde descansam os sentidos e se aquietam as insatisfações, mural tinto de padrões eternos e pólo de infinita sobriedade. No meu corpo se guardariam as artes abstractas de desejo e sob as rigorosas lajes se acharia a rigidez determinada do absoluto.
Às vezes gostava de ser tão alegre que ao gesto simples de um olhar a tua face explodisse de riso e o entusiasmo rosado tivesse a temperatura excessiva da felicidade. Seria, então, o meu rosto, o lugar de múltiplos significados, expressão potente de hipóteses, de céus, de infernos e de ambições. No meu rosto estaria a salvo o teu, do tédio, da suspeita e da ingratidão.
Às vezes gostava de ser tão rico que o preço das coisas perdesse significado e o desejo da posse já fosse menor que a posse do desejo. Seria, então, na limpidez clara de um espaço induplicável, que sentirias a liberdade de não ter que ter e o verde dos campos a bastar-se no seu significado de beleza efémera. Na minha voz estaria multiplicado um canto sem reflexos, isento de vez da necessidade e da ilusão.
Às vezes gostava de ser tão inteligente que as palavras ditas em surdina fossem em si claras e de uniforme entendimento e os teus olhos brilhassem entre a surpresa e o deslumbramento ao encontro do texto soletrado e da ideia que ilumina. Seria, então, um oráculo da verdade, intérprete furtivo de emoções complexas e construtor sublime do sagrado. No plácido argumento das minhas mãos, expostas à fantasia e ao devaneio, encontrarias o conforto elementar da tua memória e o descanso flutuante dos sentidos.
Às vezes gostava de ser tão ágil, tão vertiginosamente ágil, que o meu corpo voasse sobre o teu em acrobacias rasantes, e a música da tua voz fosse o motor feliz dos meus movimentos harmónicos. Seria, então, a encarnação desejada do ritmo e fluiria sobre o teu desejo com a voracidade do génio e a intensidade da primavera. Na eufonia dos meus sentidos, arrebatados pela pueril extravagância de existires, estaria volátil a elegância infinita dos teus mínimos gestos.
Às vezes gostava de gostar de ser como sou e mesmo assim saber de ti.

Aibieme

Friday, February 16, 2007

Postcatorze

Não me lembro quantas vezes não te disse que o caminho que seguíamos não era o melhor. O que recordo é o silêncio dessas vezes que o não disse porque o som se esgotou na garganta ou porque afinal não sabia que caminho era esse que seguíamos. Recordo também a tua voz a insistir na importância da tua voz e do meu silêncio a reconhecer a importância da tua voz.

Não sobram nestes momentos outras recordações para desassombrar a incerteza que ocupou os dias e me preenche agora a memória. Tinha sobre os meus ombros uma insensatez militante e o espelho devolvia-me um olhar estranhamente pálido e demitido. Eu quis que não fosse como tinha de ser e por isso infringi todas as regras do jogo, quebrei todas as virtudes avulsas da derrota.

Não sei como, ao mover-me ao teu encontro, aceitei perder a face e a vontade, e ainda mais me surpreende, agora, ter regulado o meu impulso para um delicada forma de inexistência. Quis, para além de toda a vontade, não querer. Logrei encontrar em ti, nessa manifestação de medo violento que te fazia, uma antítese do rosto que me fora prometido, mas que uma estranha fé me levava a saber latente.

Não esqueço o teu raro sorriso. Com ele apagavas as horas de angústia que eu supunha infinitas e diluías no morno caldo das ilusões o terror de me saber condenado. Havia na forma como as palavras travestidas percorriam o discurso, um feitiço próprio de sociedade secreta que à margem da cidade constrói um mundo novo, prudente, potente e mágico.

Não sei porque volto agora a estes inúteis pensamentos, quando já tudo se passou para o ramo enigmático das miragens. Deve ser apenas um passeio inofensivo sobre as ocasiões em que a dor venceu todas as possibilidades. Um sorteio inevitável de trajectos que delimitou para mim a pragmática obscuridade a que me acostumei.

Não deixo de pensar que por vezes, como tu disseste depois, tudo estava previamente traçado, e as revistas guardadas nas caixas eram um sinal de estarem prontas para a inevitável partida. Mas eu não sabia. Não teria tido coragem de saber que o que tinha construído não era para sempre. Medo estranho este de querer alguma coisa que não é o que se quer mas que se quer sem saber. Admito apenas que o acaso fez o seu trabalho e levou cada passo para o lugar que depois se tornou evidente.

Não sei o que somos agora um ao outro para além do texto que escrevemos a duas mãos numa noite efémera. Mas esse pouco não é pouco porque agora é tudo. E já não és tu nem eu mas outra coisa que emergiu do lugar oculto em que por uma vez dissemos algumas palavras que explodiram em magia.


Aibieme

Tuesday, October 31, 2006

Posttreze

Há muito tempo que não te falo de amor. Reparei há dias que a palavra, sem que se gastasse, se tornou ausente das frases, dos períodos, dos textos e das conversas. Reconheço-lhe uma ausência que não é notada como nas coisas que, por uma razão, ou outra, ou nenhuma, perdem popularidade e deixam de andar nas bocas do mundo. Voltam à memória por razões de acaso ou por nos lembrarmos que já não nos lembramos delas durante os inventários das inexistências.

Há muito tempo que não falamos de amor. Dei conta porque no desuso das palavras elas ecoam como lacunas e cria-se no espaço um vazio de uma leveza inverosímel. No princípio era o verbo que conformava a acção; saíam do desejo os sons articulados em voz activa e flutuava no ar a insistência dos sentidos, e o que se dizia era, mesmo quando não era, a firmeza intransigente do amor.

Há muito tempo que não se fala de amor. Foi o que eu senti quando li sobre expectativas que já não esperavas serem as expectativas que tinhas esperado. Pensei que tinha a ver com a ausência de palavras que soubessem dizer de outro modo o que o corpo já não sabe. Mesmo que o corpo ainda conserve a memória do que perdeu e já não é, nem nunca foi, mais do que expectativa.

Há muito tempo que não te digo amor. Lembrei-me agora ao tomar o café: “amar é a melhor coisa do mundo” está escrito no pacote de açúcar que eu devia dispensar mas continuo a colocar na bica. O doce de uma palavra que fica na boca a dar prazer enquanto atiça as bactérias que desintegram os dentes. Doce que é amargo antes e a seguir, para que tudo se sinta renovado na dinâmica da conquista permanente.

Há no tempo que passa, entre o sóbrio e o sombrio, entre o temor e o tremor, entre o dom e a dor, finas teias de ligação, entre o eterno e o etéreo, entre o prático e o apático, entre o saber e o sabor, que levam os olhos, entre o ver e o viver, entre o crer e o querer, entre o durar e o dourar, para os lugares solitários, entre o vento e o evento, entre o passo e o compasso, entre o cais e o caos, onde se criam amarras, entre o sólido e a solidão, entre o ético e o frenético, entre o mítico e o místico, a coisa nenhuma, entre o vácuo e o vazio, entre o oco e o seco, entre o mérito e a morte...

Aibieme

Tuesday, October 17, 2006

Postdoze

Houve um momento em que citaste, há muitos anos, com cínico prazer, que o amor é eterno enquanto dura. Eu, que ensaiava impossíveis, e tinha o desvario do rigor, não fui capaz de encaixar uma frase tão fora do contexto. Sei agora que te protegias das surpresas, como entretanto me apercebi ser comum entre as pessoas racionais. Se não tivesses vinte anos e, digamos assim, cumprisses os primeiros passos na hipótese do amor, talvez se justificasse a insistência no jogo defensivo. Mas a tua preocupação, a tua desconfiança, era sobre o que fizera eu nos cinco anos que tinha a mais e que, mesmo assim, não eram suficientes para me colocar à altura da tua sobriedade imaculada.

O tempo mostrou-me que as frases precisam de um contexto. Sorrio, com a minha própria ironia, quando vejo livros que reúnem frases famosas de gente famosa e as colocam à disposição do leitor preguiçoso comum que assim se municia sem tem que passar pelos caminhos agrestes da aventura de ler. Essa parece ser a nossa época: deixar que outros extraiam da ganga as pepitas e no-las sirvam em bandejas de comida rápida. Como contestar a benignidade do projecto? Negar apenas porque em dado momento fomos derrotados por um atirador furtivo de frases cínicas?

Surpreendem-me sempre as pessoas cheias de certezas. Umas agarram-se a deuses capazes de todas as respostas, outras aos objectos soltos que vão dando movimento aos dedos e às ilusões. Perante eles o nosso ponto de vista é sempre indefensável se não tirarmos partido de alguma forma de crença que sustente a parte imponderável da racionalidade.

Levei anos até aceitar que o amor só é eterno enquanto dura. Foi já no ocaso, quando já não era sustentável aceitar os precipícios que rondavam as tuas certezas. Só percebi quando já não havia no discurso da casa uma palavra que fosse minha, que não tivesse sido emprestada de fora para soletrar com cuidado o estranho equilíbrio dos afectos. Dei por mim e a eternidade tinha acabado; o tempo tinha-se esgotado e percebi que isso tinha acontecido anos antes de ter dado conta.

Desde então tenho tentado perceber o que mata o amor. O que torna efémero o que era para ser definitivo. O que retira dos corpos o prazer da cumplicidade. O que contamina, como uma bactéria, a suposta ligação entre dois seres.

Provavelmente já sei. Mas estou à espera que o tempo que passa me permita aceitar a volubilidade pragmática das células a sobrepor-se à dedução razoável de serem preferíveis duas derrotas a uma vitória.

Aibieme

Thursday, August 31, 2006

Postonze

Estes foram os dias de que no futuro me vou lembrar como felizes. Pouca coisa, movimentos apenas suaves, esboços de coisas maiores, alguma guerrilha de interesses, alguma atenção ao esforço de crescer, muito gesto desusado para querer impressionar e a voz alta a incomodar os vizinhos. Lá fora o sol caía com estrondo incendiando os matos e a indolência, e eu ouvia músicas que preenchem agora imaginações de doze anos.

Estes foram dias que daqui a alguns anos ecoarão no meu ocaso como aqueles que valeram a pena. E por nada, claro. Como é próprio das coisas boas não se apresentarem vestidas de cores garridas nem precisarem de publicidade institucional. Dias passados, portanto, a rever em câmara lenta doze anos de história que entretanto passaram a interpor-se entre hoje e o inicio das coisas. Rapa-se pela primeira vez o bigode ralo e escutam-se do corpo os primeiros sinais de exigência. Já há alguns estragos no coração e ciúmes por sms. Aos doze anos já se percebe mal o que o outro diz e não se quer perder nenhum dos movimento no tabuleiro. Os químicos sobem ardilosamente a determinar a vontade superior da natureza.

Soa bem dizer que amanhã recordarei estes dias como aqueles em que fui feliz. Como se tivesse agora uma boa razão para chegar a amanhã e assuntos estritamente pessoais para lembrar e dar volume à importância dos afectos. Ele tem agora doze anos e passa por mim nas férias enquanto caminha para o seu próprio e exclusivo rumo. E eu vejo, enquanto sigo o meu, e comovo-me, claro, porque vai ali um bocado de mim. Porque ressoam na imagem e nos actos memórias de mim que já tinha esquecido para sempre, arrumadas de vez com os calções e a boina.

Estes dias que agora já estão na reserva quente de se tornarem os meus dias felizes, puseram-me na frente o espelho de outros anos que também poderiam ter sido os mais felizes e não foram por nenhuma razão. Apenas porque não estava disponível para ter doze anos, porque não sabia como era e é difícil, perante um corpo que se quer erguer para passar a ser, de uma maneira abrupta e rebelde e entusiasmada e arrogante e determinada, resistir à tentação de exercer a autoridade de aligeirar a alegria e formatar o ego novo em réplicas amorfas do que se julga ser a evidência.

Fiquei bem desta vez ao vê-lo sair de novo para a rotina suave do dia-a-dia. Ficou comigo esta impressão estranha de os dias virem a ter a sua memória feliz. O olhar agora é o mesmo de há quinze dias e os braços prendem o afecto com a mesma força. Mas ficou por aqui a pairar pela casa oca um som de música para doze anos que ainda não sabe senão da superfície das coisas e brinca com isso como se fosse verdade. E não há como dizer que vai ser sempre assim, que os laços que prendem a certeza são frágeis e voam livres logo que podem.

Estes foram os dias de que no futuro me vou lembrar como felizes.

Aibieme

Saturday, August 19, 2006

Postdez

Entre 85 e 99 acreditei que só eu é que perdia se as coisas corressem mal. Era assim que parecia. Acostumara-me desde cedo a aceitar que a minha interferência no andar da carruagem era um factor de descarrilamento e por isso não fui capaz de pensar outra coisa senão que o que quer que sofresse seria consequência dos meus actos. Ainda hoje não sei se fingias ou não, que para ti não tinha importância. No jogo que fazíamos, os trunfos pareciam todos teus e em caso algum a emoção venceria do teu lado, deixando para mim as sobras e a ideia de perda irreparável. Em algumas conversas, em que se colocavam hipóteses hipotéticas, em que brincávamos com as possibilidades como quem brinca com a sorte, em que dizíamos, para parecermos adultos e seguros, que o amor é eterno enquanto dura, em que, em suma, tentávamos ser cínicos sem saber muito bem como é que se fazia, a angústia que aflorava na sombra das palavras sentia-a eu em silêncio para não dar parte de fraco.

Pode ter sido esse medo de perder que empurrou a decisão até ao limite de já não ser decisão. E foi embaraçoso perceber, quando me vim embora, que afinal não havia sobras nenhumas e todo o sentimento tinha sofrido uma tal erosão que já não era senão a película fina da aparência. Digamos que joguei cobardemente pelo seguro, deixando sempre que um medo se sobrepusesse a outro até já não saber que medo primordial era esse de que fugia.

Agora que os anos passaram e foram nivelando o acidentado do terreno, penso essas hesitações de novo como se fossem hoje. E vem outra vez à ideia a irremediável assimetria dos afectos. Não bastava eu gostar de ti. Nenhuma relação se pode esgotar na unidireccionalidade. Era preciso que o teu afecto fosse tão grande como o meu; que te doesse tanto a ti como a mim falar de roturas, ainda que hipotéticas; que te angustiasse como a mim dizer frases inteligentes e cínicas acerca da brevidade da eternidade; que fosses incapaz de me ofender mesmo que te sentisses ofendida por outros; que me pusesses num lugar suficientemente elevado que se equilibrasse com o lugar onde eu te punha.

Descobri que, tal como gostei de ti, posso gostar de outra pessoa. Não outra pessoa qualquer, nem por ser outra pessoa qualquer, mas porque é fácil gostar de uma pessoa quando se gosta dessa pessoa. Porque o afecto vem, toma conta de nós e leva-nos para o outro como um reflexo e uma dádiva. O que é difícil, o que descobri que é mesmo difícil e emperra a linearidade, é a simetria, o haver no outro lado um sentimento idêntico, uma busca semelhante.

Pode ser uma dificuldade minha, pode ser uma consequência e não uma causa, pode ser um mero efeito de não saber como ressoam no outro as palavras que em nós dominam. Entre 85 e 99 acreditei que só eu é que perdia se as coisas corressem mal. Agora já não acredito, mas continuo a não gostar de perder e a gostar ainda menos que os que amo percam.

Aibieme

Monday, June 19, 2006

Postnove

Como sabes, não adianta nada a submissão. Foi uma perda de tempo acreditar que as cedências de hoje poderiam ter compensações amanhã. Acreditar, como acontece nos jogos e nas batalhas, que um ligeiro recuo pode ser estratégico para a posterior vitória. A vida é um jogo, desde que não seja a nossa. Quando está em campo o sofrimento próprio, o cinismo enterra-se na sua inanidade.

Mas também sabes que não nos submetemos por estratégia. A inteligência, como o gozo, tem um horizonte temporal curto, sucumbe rapidamente ao sentimento, perdendo aí o confronto com a ilusão. Acreditar, como acontece no teatro e no comércio, que a simulação é uma táctica fecunda para obter do outro o benefício. A vida é um teatro, desde que não seja a nossa. A realidade coincide com aquilo que cada um sente.

Sabes que episodicamente consegui fugir da minha realidade. Cedi, fui ao encontro do que manifestava o teu desejo e a tua vontade. Ensaiei os modelos de destino que não subscrevia. E depois de uma cedência – depois de uma perda – aprendi que vem sempre outra e outra. Acreditar, como acontece nos sequestros e no dever, que há um resgate que compensa o valor do risco. A vida é uma prisão, desde que não seja a nossa. Do formato equívoco da vontade nasce o outro equívoco da liberdade.

Só muito mais tarde soube – e não sei se tu sabias - que com a experiência não aprendemos nada que antes não soubéssemos. Testamos a liberdade por descargo de consciência, para sentir que o tempo passa na direcção certa. Acreditar, como acontece nos laboratórios e no amor, que o acaso - ou Deus - pode ter um dado viciado a sortear números impossíveis. A vida tem um destino, desde que não seja a nossa. Não me interessa o que está escrito em nenhum livro que me nomeie.

Sei que não sabes que eu não sabia que não era possível.

Aibieme

Thursday, May 04, 2006

Postoito

Não, não é culpa. Volto atrás apenas com a ideia de aprender. Procuro entre os erros que cometi, aquele ou aqueles que foram mais importantes. Sinto que tenho o direito de saber. Procuro entre os erros aquele ou aqueles que melhor possam assumir significados e ser razões. Mas não é culpa. Como sabes, decidi abolir a culpa. Sentia-me demasiado só, demasiado carregado, ao assumir as culpas de tudo e de todos como se apenas eu tivesse errado. Era demais para um corpo só, para um corpo frágil, sem estrutura para ficar soterrado nas toneladas de resíduos que todos deitavam fora com a maior da volubilidades. Era demais. Não era eu que tinha de ter a culpa toda de tudo. Fiz, por isso, o mesmo que os outros: renunciei à culpa. Primeiro à culpa, depois à responsabilidade. Por uma questão de justiça. Por uma questão de sobrevivência.
Sim, eu sei que tu estás convencida que a culpa foi toda minha. Mas até aí ainda não cheguei. Ainda não sou capaz desse grau de pureza de te considerar a culpada de tudo. Isso ainda não consigo. Mas continuo a tentar. Sei que perco bastante tranquilidade em não conseguir essa ausência. Sei que estaria num outro degrau da realidade se conseguisse olhar para ti como causa única de tudo o que é mau e, assim, descansar de vez a minha consciência. Mas, por enquanto, tenho de conceder essa limitação da minha personalidade. Talvez venha daí o meu esforço em querer perceber o que se passou. Busco nos erros, epifanias. Busco nas falhas, sensibilidade. Busco nos desvios, reorientações. Busco nos desastres, o acaso. Busco nas fugas, a tua mão.
Disseram-me que era uma questão de tempo. Como o peixe que continua a crescer na imaginação do pescador que o apanhou, assim é o meu entendimento da história. Virá um dia em que não seremos mais do que estranhos. Estranhos mais estranhos que os que nunca se conheceram. É isso que esperamos do tempo, mais do que a cura das feridas ou a redução do medo. O que faço agora no passado, é espreitar cuidadosamente as gavetas nunca abertas e tentar apanhar os sonhos que voaram. O mais estranho é nunca te encontrar nesses lugares...

Aibieme

Saturday, April 22, 2006

Postsete

Claro que me assusta o excesso. Dizes isso como se fosse natural que eu atirasse a minha vida pela janela só porque um impulso, um mero impulso, me deitou, por instantes - sabes o que são instantes - as mãos ao pescoço e me quis, não sei se o deva dizer assim, subitamente perdido, subitamente ausente, destino para outro lado, para outra questão, para outra finalidade. Claro que me assusta não saber que passo é o próximo. Não estou a falar em aventuras no espaço virtual, no espaço protegido do não me toques, do agora mato-te eu e depois matas-me tu a mim. Falo da realidade, do pouco de realidade que ainda existe, pelo menos para nós que nos habituámos a ter tudo, mesmo tudo, mesmo que estejamos sempre a gemer por nos faltar alguma coisa. Ignorância, ignorância consentida, ignorância querida. Claro que me assusta exagerar os meus gestos e perder depois disso a respeitabilidade. Que é isso de respeitabilidade? Também não sei. Sei que hoje é uma coisa feia, fora de moda, mas é também isso que me impede de embarcar totalmente em gestos irreversíveis. Está bem, a palavra certa pode ser esta: irreversibilidade. Sei de coisas irreversíveis, sei de ir e não voltar, sei de sonhar e depois cair em buracos que não têm fim e ficar, por isso, aterrado, enterrado no lodo de uma falsa sensação. Há lugares na terra, muitos lugares, talvez a maior parte dos lugares, em que todos os dias as pessoas que lá estão desafiam a irreversibilidade dos momentos e esperam, apenas esperam, que haja um momento de sorte e isso basta-lhes, parece-me a mim que isso lhes basta. Aliás, não têm oportunidade de saber sequer que existem outros mundos em que o desafio do instante é inventar desafios para o instante seguinte; em que está tudo previsto do nascimento até à morte e cada instante vale apenas o tédio de um capricho mal sucedido ou o difuso prazer de acrescentar mais um objecto à lista da fortuna. Ainda assim, ocasiões supremas de sofrimento, as falhas do elevador e do aquecimento central. Não, não sou capaz de arriscar fora dos parâmetros porque o meu risco é sempre um risco mascarado, uma imitação para consumo confortável na comodidade dos aposentos reais. Sei que te ofendo porque sentes que não estou a falar de mim mas de ti. O problema de conversarmos é sempre esse: cada palavra é uma ofensa; cada frase é um insulto; cada gesto é uma imprecação. Sei das tuas aventuras, sei que corres o risco todos os dias de te matares, pelos venenos que ingeres, pela maneira como vais pelas estradas, pelos lugares selvagens que visitas suspenso do confortável cartão de crédito. Sei das maravilhas da natureza que visitas nos lugares onde às vezes se contam sangrentas batalhas, aventuras uma imprevidência convencido da tua impunidade. Mas a mim o excesso assusta-me. É o meu sangue que teima em sentir que é igual ao daqueles que se debatem no lamaçal, no pântano - lembras-te? - que sustenta esta nossa animada fartura. Sabes bem a que me refiro. E eu sei que não adianta. Argumentas que tens apenas uma vida e esperas dela tirar tudo o que puderes, e depressa. E nada serei capaz de dizer que tenha qualquer sentido contra isso. Porque para me defender teria que ir buscar razões completamente fora de moda; razões que já demonstraram estar erradas como errado está tudo o que não se pode medir pela acumulação de mais e mais valor e poder. Como vês não gosto de excessos e por isso sou incapaz de dizer tudo o que pode ser dito, todo o excesso das palavras que possa falar abertamente do excesso que há neste excesso de ter.

Aibieme

Sunday, April 09, 2006

Tuesday, March 28, 2006

Postseis

Poderia ter-te informado mais cedo da minha decisão. Poderia ter-te dito o mesmo dois anos antes. Talvez até três anos antes. Não é fácil determinar a data em que um elo se quebra. Gosto da imagem da grossa corda de sisal a que o tempo vai roendo um fio de cada vez e em que a decisão se espalha pela passagem ansiosa do tempo. Por isso não sei dizer-te quando se quebrou o primeiro dos fios. Nem sei se já se quebrou o último. Talvez haja uma espécie de erosão natural que leva a que em cada dia se quebre um elo.
Sabes como eu procuro obsessivamente o porquê das coisas. Faço-o apesar de saber que é um exercício inútil. Porque também já sei que não adianta saber: de uma ou de outra forma cometemos sempre os mesmos ou outros erros. Não me lembro já que palavras tinhas para esta maneira de ser que de início te soube bem e depois a pouco e a cada vez menos.
Não sei o que se passa com o amor. Uma coisa que parecia antes uma forma de magnetismo natural que atraía os seres, passou agora a ser um exercício esforçado com técnicas laboriosas, mecanismos de precisão e manual de utilização. Aquilo que parecia uma força interior firmemente inexplicável foi agora substituído por uma ginástica cheia de exercícios de manutenção que obrigam o amante a uma dedicação de estudo e prática digno de um 'entertainer' profissional que prende pelo apelo genial de cada gesto e de cada surpresa. Ora, essa atitude do amante substitui a marca pelo seu genérico e fica, por isso, disponível para qualquer bolsa.
Isto não é um queixume. É uma constatação. Eu podia ter-te informado mais cedo sobre a minha decisão se eu soubesse ler melhor os sinais exteriores de tristeza. Porque a imagem da corda é uma boa imagem mas não é mais do que uma imagem. Porque há momentos, de maior ou menor lucidez - não sei - em que, agora, tantos anos depois, me parece que houve um instante que não sei precisar, depois do qual tudo se tornou irreversível e em que os actos, a voz, o respirar, o pó dos livros, o miar do gato e o arrastar dos pés dos vizinhos, colaboraram todos para eliminar a robustez dos fios de sisal.

Aibieme

Tuesday, March 07, 2006

Postcinco

Sabes que eu tenho que estar a uma certa distância das coisas para as saber olhar. Faço isso como ninguém, e não estou à espera de conseguir libertar-me deste peso e reconsiderar a direcção que os meus passos levam.
Também sabes que à distância a que percebo as coisas há apenas ecos e não ouço nada do que é som próprio do momento. Os gritos chegam já tarde à minha imaginação e eu não espero que eles tenham sentido. Não espero nada. Mesmo que não seja bem assim como me ocorre agora dizê-lo, porque há sempre estas palavras que não chegam, que não são suficientes para que me percebas.
Não, não tenho gestos bruscos. Não procuro na impaciência a razão que sei ter ficado escondida num quarto escuro da infância. O que sobra de cada momento não chega para ocultar esse vício que tenho de chamar verdade ao que vejo. E não oscilo. Não mudo o meu papaguear apenas para que possas por momentos ouvir o meu silêncio.
É certo que houve um tempo em que gostavas das minhas palavras. Eu tinha aberto o sótão das tristezas e a brisa nova parecia levantar a cabeça para o alto das transgressões e dos movimentos aleatórios. Vinha-me o riso, assim de repente, conflito de interesses entre o meu rosto fechado e a vontade de saltar com gritos de adolescente.
Preparei-me para quase tudo. Era esse o meu entretenimento favorito: ficar à espera de surpreender o acaso com uma mostra de conhecimento antecipado de tudo o que ele me pudesse trazer. Obsessão minha. Erro. Há demasiada diversidade na imaginação do tempo. Por mais seguro que estivesse vinha sempre uma vaga inesperada. E as ocasiões de voar eram poucas. O sentido da voz vinha sempre deturpado e o gesto oculto era revelado como parte integrante do dia e da moda.
Que é que me fez parar? Pergunto às vezes o que é que me fez parar. Porque eu sabia tudo. Sabia o resto de todas as histórias e as surpresas tinham ficado todas no passado, na angústia do passado.
Falta-me distância para perceber. Falta-me estar já noutro lado para compreender o erro de não estar aqui. Deve ser este o melhor método para perder sempre.

Aibieme

Tuesday, February 14, 2006

Postquatro

Tinha que te falar hoje das impressões que o passar do tempo foi deixando de ti na minha memória. Imagens, sempre imagens, múltiplas de si e indiferentes. Pensar-te é o mesmo que pensar milhões de outras coisas diversas. Mas quando te penso, penso-te a ti. E quando penso milhões de outras coisas diferentes, procuro nelas o que tu lá deixaste.
Não é por uma questão de comemoração. Não sou solidário com a translação da Terra. É por uma questão de marca que se apôs a todos os movimentos e a todas a células de que o meu corpo é capaz. Os dias são para mim, há muito tempo, o ritmo ocasional do teu rosto e as frases que uso para me cumprimentar de manhã ao espelho têm sempre um nome que começa por ti.
Sei que tu sabes que eu sei que isto não é nada de importante. As escalas de importância são como a escala da música. Há notas que nos tocam e outras que projectam indiferença. Mas também sei que sabes que eu sei que já não cedo facilmente ao destino e olho para o caminho com a mesma sobriedade com que marco os meus pés na areia da praia.
Anos depois ainda não encontrei as palavras certas. Embora eu saiba que tu sabes que eu sei que não existem essas palavras certas, é sempre por elas que persisto nesta procura de um ocasional tom de milagre que um dia faça parecer harmonia o movimento fortuito de duas cordas que tentam ocasionalmente vibrar em conjunto.
Agora que se tornou fácil de dizer que sentir ou não sentir é uma questão de moléculas e em que uma paixão pode ser afinal não mais que uma hormona impertinente a desestabilizar a ordem, eu deixo à ciência as suas materiais certezas e continuo a fantasiar o desejo como música que não se explica. Nada acorda da matéria inanimada o acorde solitário que faz arrepiar uma emoção inesperada. Há um salto quântico entre essa indiferença perante o tempo e o espaço, e a entropia caótica que se gera ao fixar os teus olhos.
Hoje, por acaso, lembrei-me que há planos do saber que me interpelam sobre ti. Lembrei-me que há ocasiões em que estamos e outras em que é a ausência que marca o passar dos segundos. Lembrei-me também que os dados das experiências são muitas vezes contraditórios.
Mas, apesar da química, da genética e da matemática, continuo sem explicação para nada, como se nenhuma descoberta me movesse do meu irredutível amor. Mas há, apesar de tudo, muitas diferenças em relação ao tempo em que as perguntas eram um peso constante sobre a identidade dos sentidos. A maior dessas diferenças é, agora, ser capaz de sorrir trocista de todas essas explicações de que já não preciso.

Aibieme

Tuesday, January 24, 2006

Posttrês

Tinha-te dito, sem segundas intenções, que as tuas palavras tinham um certo fogo que as tornava ao mesmo tempo apetecíveis e perigosas. Percebeste, parece-me a mim que percebeste, que eu tinha alguma coisa escondida contra as tuas palavras, mas hesitava em ser claro, hesitava em dizer coisas que te parecia a ti que eu tinha para dizer e que eu não dizia por pensar que com elas te iria magoar.

Digo parece-me, e faço-o por redundância, porque o que digo é o que me parece e outra coisa não seria de esperar.

Pensei que agora poderia dizer exactamente o que te queria dizer quando te disse que as tuas palavras tinham um certo fogo que as tornava ao mesmo tempo apetecíveis e perigosas. Mas fazê-lo, agora, seria reconhecer que quando o disse tinha outra coisa para dizer. E não o tinha. Ou, se quiseres, parece-me que não o tinha.

O que quer que possa dizer agora, sobre o que disse ou sobre outra coisa qualquer, é um remendo sobre um rasgão que não sei de onde veio.

Eu sei que poderia tentar. Poderia tentar dizer a mesma coisa por outras palavras. Como se tivesse que explicar um conceito difícil e para isso usasse de analogias, comparações, metáforas, imitações que ficam no lugar onde estava outra coisa como se fossem ela, não sendo ela e não sendo já senão o esforço de reconstruir ou segurar de pé uma ruína que morreu.

Fico a pensar que já havia alguma coisa antes das minhas palavras. Talvez já houvesse mesmo qualquer coisa antes das tuas palavras.

Um esforço que eu fizesse para traduzir o que te disse, ou o simples dizer que não queria dizer outra coisa senão o que disse, parece levar-te a pensar que, outra vez, por detrás das minhas palavras, ditas sobre as tuas palavras, em consequência de ter sentido, estava uma intenção oculta que nem tu descobres, nem eu, do teu ponto de vista, quero dizer.

Seria melhor se eu tivesse dito que as tuas palavras eram belas. Não é mentira. Mas não percebo porque é que agora digo que 'seria melhor' se disse naquele momento as palavras que eram as palavras daquele momento. E o que quer dizer 'seria melhor'? A que 'melhor' me refiro? Dizer que as tuas palavras eram belas terá menor probabilidade de ter segundas intenções? E porque seria 'melhor' dizer essas palavras menos prováveis?

Não adianta. Nunca saberei conviver com a morte.


Aibieme

Thursday, January 12, 2006

Postdois

Cada dia antigo ou dos que vêm a seguir a este que agora é, passo sobre os efeitos pouco edificantes de olhar para o lado e me parecer que o horizonte se tornou baço. Dizes, tens dito repetidas vezes, que o passo que se pode dar no instante que se vive é o mais importante; que o olhar para trás é, num sentido lato, uma derrota ou um hiato na marcação do tempo; que antecipar, guardar recursos na despensa dos afectos, é trocar uma loucura por outra.

Não sei ainda que opinião posso dizer de ti. Eu sei que passaram anos, que o tempo deveria ter sido suficiente para eu deixar de te sonhar apenas, e dar-te consistência, corpo, sobriedade. Há em todos os actos uma lógica - gosto de pensar assim - e se não vejo a lógica, se parece faltar sentido, isso é apenas por ainda não ter chegado lá.

Está bem, eu tinha dito há muitos anos, com a certeza que tinha na altura, que tu eras isto e eras aquilo e que isso me bastava. Mas tu, como eu - como essas coisas todas que andam por aí e dizem que são - és um alvo em movimento. Quando já construí a tua nova máscara, sobe de estranhas profundidades um novo traço que desvia o olhar e apaga tudo o resto. E eu?

É possível. É possível que também comigo ocorram os mesmo movimentos telúricos. É possível que em cada manhã o rosto tenha mais um risco e o meu salto mortal tenha uma nova variante. Mas sabes que esses rodopios sou eu. Eu digo sempre antes de saltar: olha este movimento; olha este pormenor.

Concordo, não é só isso. Haverá coisas que tu vês e que eu não vejo. Mas podem ser os teus olhos. Pode ser o não estares na mesma posição de ontem que te leva a ver-me de uma maneira que não é a mesma de ontem. O sistema tem muitas variáveis.

Há muita violência no choque entre dois comboios que caminham a grande velocidade um contra o outro. A física explica isso pela adição das velocidades. Gosto do sinal mais. Gosto da soma e de somar a mais b e ver ambos a diluirem-se num novo e diferente c.

Hoje o meu filho falou-me de ter aprendido que a adição não tem elemento absorvente.

Ainda é muito cedo para ele saber a verdade toda.

Aibieme

Sunday, January 01, 2006

Postum

Sabes, eu sei que quando tu usas palavras inadequadas isso quer dizer que esgotaste o sentido e queres agora determinar os passos seguintes por palavras que já não são tuas. Mas isso não é muito importante. Porque apesar de perceber a sua falsidade eu bebo as tuas palavras. É tudo uma questão de percepção e não se percebendo o que é que vem a seguir não temos hesitações em acreditar que o actual, estas palavras que são ditas, são as certas, as adequadas para o momento que vem a seguir, tornar as constantes imaginárias que povoam os sentidos, indeterminações.

Não é há muito tempo, infelizmente, que te leio. Poderia ter-te lido desde o início. Poderia ter-te lido mesmo antes de começares a escrever, mesmo antes de começares a saber escrever. Mas aí, devo dizê-lo, já haveria alguma batota, alguma viagem no tempo. E isso, confesso, eu não sei fazer. Sou um tipo prosaico. Não tenho quaisquer espécies de ligações ao transcendente. Ouço as palavras e levo-as para o sentido abstracto que têm sem acrescentar um milímetro que seja à sua natureza.

De facto, eu sei que tu não sabes. Tens uma vaga ideia que te leio e que com essas palavras que leio aproveito para fazer uns movimentos telúricos nas minhas emoções. Nada que transcenda os momentos, óbvios, da verosimilhança.

Por isso, sem razão nenhuma, vou diariamente à procura dos teus textos e quando os encontro meço-os como se fossem novas unidades da diversidade humana e a seguir coloco-os, com alguma ternura, é verdade, no estreito campo das palavras esquecidas.

Percebes então que o que me falha, admitindo sempre que me falha alguma coisa, é a razão. Mas isso não é razão para não perceber que o meu esforço é honesto. O que eu queria, de facto, e vem a talho de foice neste momento em que o ano recomeça, era passar o meu tempo a olhar para um horizonte a que sentisse alguma pertença. Como o cavalo que apesar do sofrimento sente que pertence à terra que ajuda a lavrar- eu sei que é uma comparação forçada mas as comparações são, por definição, forçadas. Porque eu não sinto que pertença ao meu sofrimento e queria, por isso, estar num lugar em que sentisse. Simplesmente isso: que sentisse.

Há nos teus textos, que procuro, uma intenção pouco clara de tornar os sonhos dos outros momentos de fulgurante realidade. Mas isso é irrelevante. O que eu queria era que fosses capaz de escrever, com as tuas ágeis palavras, um destino que me agradasse.

Aibieme

Wednesday, June 23, 2004

blogueamento

Estou blogueado. Mas isto passa. Assim que acabar a neura 2004...