Tuesday, January 24, 2006

Posttrês

Tinha-te dito, sem segundas intenções, que as tuas palavras tinham um certo fogo que as tornava ao mesmo tempo apetecíveis e perigosas. Percebeste, parece-me a mim que percebeste, que eu tinha alguma coisa escondida contra as tuas palavras, mas hesitava em ser claro, hesitava em dizer coisas que te parecia a ti que eu tinha para dizer e que eu não dizia por pensar que com elas te iria magoar.

Digo parece-me, e faço-o por redundância, porque o que digo é o que me parece e outra coisa não seria de esperar.

Pensei que agora poderia dizer exactamente o que te queria dizer quando te disse que as tuas palavras tinham um certo fogo que as tornava ao mesmo tempo apetecíveis e perigosas. Mas fazê-lo, agora, seria reconhecer que quando o disse tinha outra coisa para dizer. E não o tinha. Ou, se quiseres, parece-me que não o tinha.

O que quer que possa dizer agora, sobre o que disse ou sobre outra coisa qualquer, é um remendo sobre um rasgão que não sei de onde veio.

Eu sei que poderia tentar. Poderia tentar dizer a mesma coisa por outras palavras. Como se tivesse que explicar um conceito difícil e para isso usasse de analogias, comparações, metáforas, imitações que ficam no lugar onde estava outra coisa como se fossem ela, não sendo ela e não sendo já senão o esforço de reconstruir ou segurar de pé uma ruína que morreu.

Fico a pensar que já havia alguma coisa antes das minhas palavras. Talvez já houvesse mesmo qualquer coisa antes das tuas palavras.

Um esforço que eu fizesse para traduzir o que te disse, ou o simples dizer que não queria dizer outra coisa senão o que disse, parece levar-te a pensar que, outra vez, por detrás das minhas palavras, ditas sobre as tuas palavras, em consequência de ter sentido, estava uma intenção oculta que nem tu descobres, nem eu, do teu ponto de vista, quero dizer.

Seria melhor se eu tivesse dito que as tuas palavras eram belas. Não é mentira. Mas não percebo porque é que agora digo que 'seria melhor' se disse naquele momento as palavras que eram as palavras daquele momento. E o que quer dizer 'seria melhor'? A que 'melhor' me refiro? Dizer que as tuas palavras eram belas terá menor probabilidade de ter segundas intenções? E porque seria 'melhor' dizer essas palavras menos prováveis?

Não adianta. Nunca saberei conviver com a morte.


Aibieme

Thursday, January 12, 2006

Postdois

Cada dia antigo ou dos que vêm a seguir a este que agora é, passo sobre os efeitos pouco edificantes de olhar para o lado e me parecer que o horizonte se tornou baço. Dizes, tens dito repetidas vezes, que o passo que se pode dar no instante que se vive é o mais importante; que o olhar para trás é, num sentido lato, uma derrota ou um hiato na marcação do tempo; que antecipar, guardar recursos na despensa dos afectos, é trocar uma loucura por outra.

Não sei ainda que opinião posso dizer de ti. Eu sei que passaram anos, que o tempo deveria ter sido suficiente para eu deixar de te sonhar apenas, e dar-te consistência, corpo, sobriedade. Há em todos os actos uma lógica - gosto de pensar assim - e se não vejo a lógica, se parece faltar sentido, isso é apenas por ainda não ter chegado lá.

Está bem, eu tinha dito há muitos anos, com a certeza que tinha na altura, que tu eras isto e eras aquilo e que isso me bastava. Mas tu, como eu - como essas coisas todas que andam por aí e dizem que são - és um alvo em movimento. Quando já construí a tua nova máscara, sobe de estranhas profundidades um novo traço que desvia o olhar e apaga tudo o resto. E eu?

É possível. É possível que também comigo ocorram os mesmo movimentos telúricos. É possível que em cada manhã o rosto tenha mais um risco e o meu salto mortal tenha uma nova variante. Mas sabes que esses rodopios sou eu. Eu digo sempre antes de saltar: olha este movimento; olha este pormenor.

Concordo, não é só isso. Haverá coisas que tu vês e que eu não vejo. Mas podem ser os teus olhos. Pode ser o não estares na mesma posição de ontem que te leva a ver-me de uma maneira que não é a mesma de ontem. O sistema tem muitas variáveis.

Há muita violência no choque entre dois comboios que caminham a grande velocidade um contra o outro. A física explica isso pela adição das velocidades. Gosto do sinal mais. Gosto da soma e de somar a mais b e ver ambos a diluirem-se num novo e diferente c.

Hoje o meu filho falou-me de ter aprendido que a adição não tem elemento absorvente.

Ainda é muito cedo para ele saber a verdade toda.

Aibieme

Sunday, January 01, 2006

Postum

Sabes, eu sei que quando tu usas palavras inadequadas isso quer dizer que esgotaste o sentido e queres agora determinar os passos seguintes por palavras que já não são tuas. Mas isso não é muito importante. Porque apesar de perceber a sua falsidade eu bebo as tuas palavras. É tudo uma questão de percepção e não se percebendo o que é que vem a seguir não temos hesitações em acreditar que o actual, estas palavras que são ditas, são as certas, as adequadas para o momento que vem a seguir, tornar as constantes imaginárias que povoam os sentidos, indeterminações.

Não é há muito tempo, infelizmente, que te leio. Poderia ter-te lido desde o início. Poderia ter-te lido mesmo antes de começares a escrever, mesmo antes de começares a saber escrever. Mas aí, devo dizê-lo, já haveria alguma batota, alguma viagem no tempo. E isso, confesso, eu não sei fazer. Sou um tipo prosaico. Não tenho quaisquer espécies de ligações ao transcendente. Ouço as palavras e levo-as para o sentido abstracto que têm sem acrescentar um milímetro que seja à sua natureza.

De facto, eu sei que tu não sabes. Tens uma vaga ideia que te leio e que com essas palavras que leio aproveito para fazer uns movimentos telúricos nas minhas emoções. Nada que transcenda os momentos, óbvios, da verosimilhança.

Por isso, sem razão nenhuma, vou diariamente à procura dos teus textos e quando os encontro meço-os como se fossem novas unidades da diversidade humana e a seguir coloco-os, com alguma ternura, é verdade, no estreito campo das palavras esquecidas.

Percebes então que o que me falha, admitindo sempre que me falha alguma coisa, é a razão. Mas isso não é razão para não perceber que o meu esforço é honesto. O que eu queria, de facto, e vem a talho de foice neste momento em que o ano recomeça, era passar o meu tempo a olhar para um horizonte a que sentisse alguma pertença. Como o cavalo que apesar do sofrimento sente que pertence à terra que ajuda a lavrar- eu sei que é uma comparação forçada mas as comparações são, por definição, forçadas. Porque eu não sinto que pertença ao meu sofrimento e queria, por isso, estar num lugar em que sentisse. Simplesmente isso: que sentisse.

Há nos teus textos, que procuro, uma intenção pouco clara de tornar os sonhos dos outros momentos de fulgurante realidade. Mas isso é irrelevante. O que eu queria era que fosses capaz de escrever, com as tuas ágeis palavras, um destino que me agradasse.

Aibieme