Tuesday, October 31, 2006

Posttreze

Há muito tempo que não te falo de amor. Reparei há dias que a palavra, sem que se gastasse, se tornou ausente das frases, dos períodos, dos textos e das conversas. Reconheço-lhe uma ausência que não é notada como nas coisas que, por uma razão, ou outra, ou nenhuma, perdem popularidade e deixam de andar nas bocas do mundo. Voltam à memória por razões de acaso ou por nos lembrarmos que já não nos lembramos delas durante os inventários das inexistências.

Há muito tempo que não falamos de amor. Dei conta porque no desuso das palavras elas ecoam como lacunas e cria-se no espaço um vazio de uma leveza inverosímel. No princípio era o verbo que conformava a acção; saíam do desejo os sons articulados em voz activa e flutuava no ar a insistência dos sentidos, e o que se dizia era, mesmo quando não era, a firmeza intransigente do amor.

Há muito tempo que não se fala de amor. Foi o que eu senti quando li sobre expectativas que já não esperavas serem as expectativas que tinhas esperado. Pensei que tinha a ver com a ausência de palavras que soubessem dizer de outro modo o que o corpo já não sabe. Mesmo que o corpo ainda conserve a memória do que perdeu e já não é, nem nunca foi, mais do que expectativa.

Há muito tempo que não te digo amor. Lembrei-me agora ao tomar o café: “amar é a melhor coisa do mundo” está escrito no pacote de açúcar que eu devia dispensar mas continuo a colocar na bica. O doce de uma palavra que fica na boca a dar prazer enquanto atiça as bactérias que desintegram os dentes. Doce que é amargo antes e a seguir, para que tudo se sinta renovado na dinâmica da conquista permanente.

Há no tempo que passa, entre o sóbrio e o sombrio, entre o temor e o tremor, entre o dom e a dor, finas teias de ligação, entre o eterno e o etéreo, entre o prático e o apático, entre o saber e o sabor, que levam os olhos, entre o ver e o viver, entre o crer e o querer, entre o durar e o dourar, para os lugares solitários, entre o vento e o evento, entre o passo e o compasso, entre o cais e o caos, onde se criam amarras, entre o sólido e a solidão, entre o ético e o frenético, entre o mítico e o místico, a coisa nenhuma, entre o vácuo e o vazio, entre o oco e o seco, entre o mérito e a morte...

Aibieme

Tuesday, October 17, 2006

Postdoze

Houve um momento em que citaste, há muitos anos, com cínico prazer, que o amor é eterno enquanto dura. Eu, que ensaiava impossíveis, e tinha o desvario do rigor, não fui capaz de encaixar uma frase tão fora do contexto. Sei agora que te protegias das surpresas, como entretanto me apercebi ser comum entre as pessoas racionais. Se não tivesses vinte anos e, digamos assim, cumprisses os primeiros passos na hipótese do amor, talvez se justificasse a insistência no jogo defensivo. Mas a tua preocupação, a tua desconfiança, era sobre o que fizera eu nos cinco anos que tinha a mais e que, mesmo assim, não eram suficientes para me colocar à altura da tua sobriedade imaculada.

O tempo mostrou-me que as frases precisam de um contexto. Sorrio, com a minha própria ironia, quando vejo livros que reúnem frases famosas de gente famosa e as colocam à disposição do leitor preguiçoso comum que assim se municia sem tem que passar pelos caminhos agrestes da aventura de ler. Essa parece ser a nossa época: deixar que outros extraiam da ganga as pepitas e no-las sirvam em bandejas de comida rápida. Como contestar a benignidade do projecto? Negar apenas porque em dado momento fomos derrotados por um atirador furtivo de frases cínicas?

Surpreendem-me sempre as pessoas cheias de certezas. Umas agarram-se a deuses capazes de todas as respostas, outras aos objectos soltos que vão dando movimento aos dedos e às ilusões. Perante eles o nosso ponto de vista é sempre indefensável se não tirarmos partido de alguma forma de crença que sustente a parte imponderável da racionalidade.

Levei anos até aceitar que o amor só é eterno enquanto dura. Foi já no ocaso, quando já não era sustentável aceitar os precipícios que rondavam as tuas certezas. Só percebi quando já não havia no discurso da casa uma palavra que fosse minha, que não tivesse sido emprestada de fora para soletrar com cuidado o estranho equilíbrio dos afectos. Dei por mim e a eternidade tinha acabado; o tempo tinha-se esgotado e percebi que isso tinha acontecido anos antes de ter dado conta.

Desde então tenho tentado perceber o que mata o amor. O que torna efémero o que era para ser definitivo. O que retira dos corpos o prazer da cumplicidade. O que contamina, como uma bactéria, a suposta ligação entre dois seres.

Provavelmente já sei. Mas estou à espera que o tempo que passa me permita aceitar a volubilidade pragmática das células a sobrepor-se à dedução razoável de serem preferíveis duas derrotas a uma vitória.

Aibieme