Thursday, August 31, 2006

Postonze

Estes foram os dias de que no futuro me vou lembrar como felizes. Pouca coisa, movimentos apenas suaves, esboços de coisas maiores, alguma guerrilha de interesses, alguma atenção ao esforço de crescer, muito gesto desusado para querer impressionar e a voz alta a incomodar os vizinhos. Lá fora o sol caía com estrondo incendiando os matos e a indolência, e eu ouvia músicas que preenchem agora imaginações de doze anos.

Estes foram dias que daqui a alguns anos ecoarão no meu ocaso como aqueles que valeram a pena. E por nada, claro. Como é próprio das coisas boas não se apresentarem vestidas de cores garridas nem precisarem de publicidade institucional. Dias passados, portanto, a rever em câmara lenta doze anos de história que entretanto passaram a interpor-se entre hoje e o inicio das coisas. Rapa-se pela primeira vez o bigode ralo e escutam-se do corpo os primeiros sinais de exigência. Já há alguns estragos no coração e ciúmes por sms. Aos doze anos já se percebe mal o que o outro diz e não se quer perder nenhum dos movimento no tabuleiro. Os químicos sobem ardilosamente a determinar a vontade superior da natureza.

Soa bem dizer que amanhã recordarei estes dias como aqueles em que fui feliz. Como se tivesse agora uma boa razão para chegar a amanhã e assuntos estritamente pessoais para lembrar e dar volume à importância dos afectos. Ele tem agora doze anos e passa por mim nas férias enquanto caminha para o seu próprio e exclusivo rumo. E eu vejo, enquanto sigo o meu, e comovo-me, claro, porque vai ali um bocado de mim. Porque ressoam na imagem e nos actos memórias de mim que já tinha esquecido para sempre, arrumadas de vez com os calções e a boina.

Estes dias que agora já estão na reserva quente de se tornarem os meus dias felizes, puseram-me na frente o espelho de outros anos que também poderiam ter sido os mais felizes e não foram por nenhuma razão. Apenas porque não estava disponível para ter doze anos, porque não sabia como era e é difícil, perante um corpo que se quer erguer para passar a ser, de uma maneira abrupta e rebelde e entusiasmada e arrogante e determinada, resistir à tentação de exercer a autoridade de aligeirar a alegria e formatar o ego novo em réplicas amorfas do que se julga ser a evidência.

Fiquei bem desta vez ao vê-lo sair de novo para a rotina suave do dia-a-dia. Ficou comigo esta impressão estranha de os dias virem a ter a sua memória feliz. O olhar agora é o mesmo de há quinze dias e os braços prendem o afecto com a mesma força. Mas ficou por aqui a pairar pela casa oca um som de música para doze anos que ainda não sabe senão da superfície das coisas e brinca com isso como se fosse verdade. E não há como dizer que vai ser sempre assim, que os laços que prendem a certeza são frágeis e voam livres logo que podem.

Estes foram os dias de que no futuro me vou lembrar como felizes.

Aibieme

Saturday, August 19, 2006

Postdez

Entre 85 e 99 acreditei que só eu é que perdia se as coisas corressem mal. Era assim que parecia. Acostumara-me desde cedo a aceitar que a minha interferência no andar da carruagem era um factor de descarrilamento e por isso não fui capaz de pensar outra coisa senão que o que quer que sofresse seria consequência dos meus actos. Ainda hoje não sei se fingias ou não, que para ti não tinha importância. No jogo que fazíamos, os trunfos pareciam todos teus e em caso algum a emoção venceria do teu lado, deixando para mim as sobras e a ideia de perda irreparável. Em algumas conversas, em que se colocavam hipóteses hipotéticas, em que brincávamos com as possibilidades como quem brinca com a sorte, em que dizíamos, para parecermos adultos e seguros, que o amor é eterno enquanto dura, em que, em suma, tentávamos ser cínicos sem saber muito bem como é que se fazia, a angústia que aflorava na sombra das palavras sentia-a eu em silêncio para não dar parte de fraco.

Pode ter sido esse medo de perder que empurrou a decisão até ao limite de já não ser decisão. E foi embaraçoso perceber, quando me vim embora, que afinal não havia sobras nenhumas e todo o sentimento tinha sofrido uma tal erosão que já não era senão a película fina da aparência. Digamos que joguei cobardemente pelo seguro, deixando sempre que um medo se sobrepusesse a outro até já não saber que medo primordial era esse de que fugia.

Agora que os anos passaram e foram nivelando o acidentado do terreno, penso essas hesitações de novo como se fossem hoje. E vem outra vez à ideia a irremediável assimetria dos afectos. Não bastava eu gostar de ti. Nenhuma relação se pode esgotar na unidireccionalidade. Era preciso que o teu afecto fosse tão grande como o meu; que te doesse tanto a ti como a mim falar de roturas, ainda que hipotéticas; que te angustiasse como a mim dizer frases inteligentes e cínicas acerca da brevidade da eternidade; que fosses incapaz de me ofender mesmo que te sentisses ofendida por outros; que me pusesses num lugar suficientemente elevado que se equilibrasse com o lugar onde eu te punha.

Descobri que, tal como gostei de ti, posso gostar de outra pessoa. Não outra pessoa qualquer, nem por ser outra pessoa qualquer, mas porque é fácil gostar de uma pessoa quando se gosta dessa pessoa. Porque o afecto vem, toma conta de nós e leva-nos para o outro como um reflexo e uma dádiva. O que é difícil, o que descobri que é mesmo difícil e emperra a linearidade, é a simetria, o haver no outro lado um sentimento idêntico, uma busca semelhante.

Pode ser uma dificuldade minha, pode ser uma consequência e não uma causa, pode ser um mero efeito de não saber como ressoam no outro as palavras que em nós dominam. Entre 85 e 99 acreditei que só eu é que perdia se as coisas corressem mal. Agora já não acredito, mas continuo a não gostar de perder e a gostar ainda menos que os que amo percam.

Aibieme